11/02/2014

Capitulo 3

AS PORTAS DE MINHA SACADA ESTAVAM ABERTAS, assim como a porta que dava para o corredor, de modo que meu quarto se enchia da brisa que vinha dos jardins. Eu queria que aquele vento suave fosse um consolo para o monte de trabalho que eu tinha a fazer, mas, em vez disso, ele foi uma distração, porque me deixou louca de vontade de estar em qualquer outro lugar que não fosse na frente da escrivaninha.
 Suspirei e me larguei na cadeira, jogando a cabeça para trás.

— Anne — chamei.
— Sim, senhorita? — respondeu a chefe das criadas, que costurava no canto do quarto. Eu não precisava olhar para saber que Mary e Lucy, minhas duas outras criadas, ficaram a postos, para poderem me atender também.
— Ordeno que descubra o significado deste relatório — disse eu, estendendo preguiçosamente o braço na direção daquelas estatísticas militares sobre a mesa.

Era um teste para todas as meninas da Elite, mas eu não conseguia me concentrar. As três criadas riram, provavelmente tanto por causa da minha ordem ridícula quanto pelo fato de eu ter finalmente ordenado algo. A liderança realmente não era um dos meus pontos fortes.

— Sinto muito, senhorita, mas penso que isso ultrapassa meus limites — respondeu Anne. Apesar de meu pedido ter sido de brincadeira, assim como a resposta dela, notei um verdadeiro tom de desculpas em sua voz.
— O.k. — lamentei, endireitando-me.
— Terei mesmo que fazer isso sozinha. Vocês são um bando de inúteis. Amanhã pedirei novas criadas. Desta vez é sério.

Todas caíram na gargalhada mais uma vez, e eu voltei a focar nos números. Comecei a desconfiar de que aquele relatório era falso, mas não tinha certeza. Reli os parágrafos e tabelas franzindo a testa e mordendo a tampa da caneta enquanto tentava me concentrar. Ouvi Lucy rir baixo e levantei os olhos para ver o que a divertia. Segui seu olhar até a porta: lá estava Joseph, encostado no batente.

— Você me entregou! — ele reclamou com Lucy, que ainda ria.

Afastei a cadeira com pressa e corri para os braços dele.

 — Você leu meus pensamentos!
— Li?
 — Por favor, diga que podemos ir lá fora. Só um pouquinho?

 Joseph sorriu.

— Tenho vinte minutos e depois tenho que voltar.

O arrastei pelo corredor. O matraquear empolgado das criadas desaparecia atrás de nós. Não havia como negar que os jardins tinham se tornado o nosso cantinho. Íamos para lá quase sempre que podíamos estar a sós; tão diferente da maneira como Nicholas e eu costumávamos passar o tempo juntos: entocados na
 minúscula casa da árvore no meu quintal dos fundos, o único lugar em que estávamos seguros. De repente, comecei a imaginar se Nicholas estava por ali, entre os muitos guardas do palácio, observando Joseph segurar minha mão.

— O que é isso? — perguntou o príncipe, acariciando as pontas dos meus dedos enquanto caminhávamos.
— Calos. São de apertar as cordas do violino todos os dias durante quatro horas.
— Nunca tinha reparado nisso.
— Eles são um problema para você?

 Dentre as seis garotas restantes, eu era a de casta mais baixa e duvidava que qualquer uma das outras tivesse mãos como as minhas. Joseph parou e levou minha mão até sua boca para beijar as pontas pequenas e ásperas dos meus dedos.

 — Pelo contrário. Acho bonito.

Senti minhas bochechas corarem. Ele continuou:

— Eu vi muito pelo mundo. Admito: quase sempre por trás de um vidro à prova de balas ou da torre de algum castelo antigo. Mas vi. E tenho à disposição a resposta para milhares de perguntas. Mas esta mãozinha aqui? — ele olhou fundo nos meus olhos. — Esta mão produz sons que não se
comparam a nada que eu já tenha ouvido. Às vezes, penso que a visão de você tocando violino foi apenas um sonho. Aquilo foi tão lindo. E os calos são a prova de que foi real.

Havia momentos em que ele falava comigo de uma maneira impressionante, romântica demais para acreditar. E apesar de eu guardar aquelas palavras no meu coração, nunca tinha certeza se podia confiar plenamente nelas. Como saber que ele não dizia o mesmo para as outras? Era hora de eu mudar de assunto.

— Você tem respostas para milhares de perguntas, mesmo?
 — Com certeza. Me pergunte sobre qualquer coisa. Se eu não souber a resposta, saberei onde encontrar.
— Qualquer coisa?
— Qualquer coisa.

Era difícil tirar uma pergunta do nada, ainda mais uma para deixá-lo pasmo, que era a minha intenção. Pensei por uns instantes nas coisas que me deixavam mais curiosa na infância: por que os aviões voavam, como eram os Estados Unidos, como funcionavam os aparelhos de som que as pessoas das castas superiores tinham.
E então veio a luz:

 — O que é “Halloween”? — perguntei.
— Halloween?

Ele claramente nunca tinha ouvido falar disso. Não fiquei surpresa. Só vi a palavra uma vez em um livro de história velho dos meus pais. Algumas páginas daquele livro estavam ilegíveis de tão gastas, e muitas delas rasgadas ou arrancadas. Ainda assim, sempre me fascinou aquele feriado sobre o qual nada sabíamos.

— Vossa Esperteza Real não parece tão seguro de si agora... — provoquei. Ele me olhou com uma cara feia, mas estava claro que apenas fingia um incômodo. Ele checou as horas e respirou fundo.
— Me acompanhe. Temos que nos apressar — disse ele antes de agarrar meu braço e começar a correr.

Tropecei um pouco nos saltinhos do sapato, mas não fiz feio e mantive a passada enquanto Joseph me levava de volta ao palácio com um sorriso de orelha a orelha. Eu adorava quando ele liberava seu lado mais descontraído; muitas vezes, ele era sério demais.

— Cavalheiros — saudou ao passarmos pela porta onde estavam os guardas.

Consegui chegar até a metade da sala, e então meus sapatos me venceram.

 — Joseph, pare! — arfei. — Eu não aguento mais!
 — Vamos, vamos! Você vai adorar — ele replicou e puxou meu braço quando eu diminuí o ritmo.

Ele acabou desacelerando um pouco para me acompanhar, mas era claro que estava louco para ir mais rápido. Seguimos em direção ao corredor norte, próximo da área onde filmavam o Jornal Oficial de Illéa, mas nos embrenhamos por uma escadaria antes de chegarmos até lá. Subimos e subimos, e eu já não conseguia conter minha curiosidade.

— Aonde vamos exatamente? Joseph me encarou, seu rosto de repente ficou sério.
 — Você precisa jurar que nunca vai mostrar este quartinho a ninguém. Apenas alguns membros da família e um punhado de guardas sabem que ele existe.

Eu estava mais do que intrigada.

— Juro.

Chegamos ao topo da escadaria. Joseph abriu a porta para mim, pegou minha mão e me conduziu pelo corredor até pararmos em frente a uma parede quase totalmente coberta com pinturas magníficas. O príncipe olhou para trás, para se certificar de que ninguém estava lá. Em seguida, passou a mão pela moldura do último quadro. Ouvi um clique e o quadro se abriu diante de nossos olhos.
 Meu queixo caiu. Joseph sorria. Por trás da pintura havia uma porta um pouco acima do nível do chão que possuía um pequeno teclado numérico, como o de um telefone. Joseph digitou uns números e ouvimos um leve bip. O príncipe girou a maçaneta e olhou para mim.

— Vou ajudá-la. O degrau é bem alto.

Ele me deu a mão e fez um gesto para que eu entrasse primeiro. Fiquei chocada. A sala sem janelas estava repleta de estantes carregadas com o que pareciam ser livros antigos. Duas delas continham livros com uma fita vermelha na lombada. Também vi um atlas gigantesco recostado contra uma das paredes, aberto em uma página com o desenho de um país cujo nome eu não sabia. Sobre uma mesa no meio da sala, havia um punhado de livros que pareciam ter sido manuseados fazia pouco tempo e que ali permaneciam para facilitar uma consulta rápida. Por fim, uma tela grande que parecia ser um televisor estava embutida na parede.

— O que significam as fitas vermelhas?
 — São os livros proibidos. Pelo que sabemos, são as únicas cópias remanescentes em toda Illéa.

Virei-me para ele, indagando com os olhos o que não tinha coragem de pedir em voz alta.

— Sim, você pode olhá-los — falou Joseph com um tom de voz que sugeria certo incômodo, mas ao mesmo tempo com uma expressão de quem esperava por esse pedido.

Puxei com cuidado um dos livros, com medo de destruir sem querer aquele tesouro. Folheei as páginas, mas me afastei quase na mesma hora. Estava simplesmente impressionada demais. Dei meia-volta e deparei com Joseph digitando em uma espécie de máquina de escrever ligada a uma tela de TV.

— O que é isso? — perguntei.
— Um computador. Você nunca viu?

Fiz que não com a cabeça e Joseph continuou, sem parecer surpreso:

— São poucos os que têm um desses hoje em dia. Este aqui serve exclusivamente para a informação contida nesta sala. Se existir algo sobre o Halloween, ele vai nos dizer onde encontrar.

Eu não entendia muito bem suas palavras, mas não pedi para explicar melhor. Em poucos segundos, sua caça apresentou uma lista com três tópicos na tela.

 — Ah, ótimo! — exclamou. — Espere bem aqui.

 Permaneci ao lado da mesa enquanto Joseph pegava os três livros que revelariam o que era o Halloween. Eu esperava que não fosse uma coisa idiota e que eu não lhe tivesse dado tanto trabalho por nada. O primeiro livro definia o Halloween como uma festa celta para marcar o fim do verão. Para não nos atrasar, nem me preocupei em mencionar que não fazia ideia do que era um celta. O livro dizia que eles acreditavam que os espíritos entravam e saíam do mundo no Halloween, e as pessoas usavam máscaras para afastar os espíritos maus. Mais tarde, ele teria se transformado num feriado laico, mais voltado para as crianças. Elas vestiam fantasias e circulavam pela cidade cantando a fim de ganhar doces. Daí surgiu a frase “gostosuras ou travessuras”, já que se não ganhassem gostosuras pregariam uma peça no dono da casa. A definição do segundo livro era similar, só que mencionava abóboras e cristianismo.

— Este vai ser o mais interessante — afirmou Joseph, folheando um livro manuscrito muito mais fino que os outros.
— E por quê? — perguntei, enquanto mudava de lado para ver melhor.
 — Isto, senhorita Demetria, é um dos volumes do diário pessoal de Gregory Illéa.
— O quê?! — exclamei. — Posso tocá-lo?
— Antes, deixe-me encontrar a página que buscamos. Veja, tem até uma foto!

Ali, como uma aparição, uma imagem de um passado desconhecido mostrava Gregory Illéa com uma expressão fechada, de paletó engomado e ar imponente. Era estranho o quanto eu podia notar do rei e de Joseph na maneira como ele se portava. Ao seu lado, uma mulher sorria desanimada para a câmera. Algo em seu rosto sugeria que, no passado, ela fora uma pessoa encantadora, mas o desejo de viver tinha abandonado seus olhos. Ela parecia cansada. Ao redor do casal havia três pessoas. A primeira era uma adolescente, linda e vibrante, com um sorriso rasgado, uma coroa e um vestido de pregas. Que engraçado! Estava vestida como uma princesa. As outras duas pessoas eram garotos, o primeiro um pouco mais alto que o segundo e ambos fantasiados de personagens que não reconheci. Pareciam a ponto de aprontar alguma. Sob a imagem, havia um registro que — por incrível que pareça — saíra do próprio punho de Gregory Illéa.

"As crianças comemoraram o Halloween deste ano com uma festa. Imagino que seja uma maneira de esquecer o que se passa ao redor, mas me parece frívolo. Somos uma das poucas famílias remanescentes com dinheiro suficiente para festejar, mas essa brincadeira de criança me parece um desperdício."

 — Você acha que é por isso que não comemoramos mais? Por ser um desperdício? — perguntei.
— Pode ser. Se a data servir de pista, esse relato foi feito logo depois que o Estado Americano da China começou a contra-atacar, um pouco antes da Quarta Guerra Mundial. Na época, a maioria das pessoas não tinha nada. Imagine uma nação inteira de Setes com um ou outro Dois.
 — Uau.

Tentei imaginar o panorama de nosso país assim, despedaçado pela guerra, lutando para juntar os pedaços. Incrível.

— Quantos diários como este ainda existem?

Joseph apontou para uma prateleira com uma fileira de cadernos parecidos com o que tínhamos em mãos.

— Mais ou menos uma dúzia.

Eu não conseguia acreditar! Toda aquela história em apenas uma sala.

— Obrigada — disse eu. — Isto aqui é algo que nunca sequer sonhei em ver. Não dá para acreditar que tudo isso é real.

Joseph estava radiante.

— Você gostaria de ler o resto? — ele perguntou, olhando para o diário.
 — Sim, claro! — praticamente gritei. Só que me lembrei de meus deveres. — Mas não posso ficar aqui. Preciso terminar de estudar aquele relatório terrível. E você precisa voltar ao trabalho.
— Verdade. Bem, e que tal isto? Você pode levar o livro e ficar com ele por uns dias.
— Tenho autorização para fazer isso? — perguntei, maravilhada.
— Não — replicou Joseph com um sorriso.

Hesitei, com medo do que tinha em mãos. E se eu o perdesse? E se o estragasse? Com certeza, Joseph pensava o mesmo. Mas eu nunca teria outra chance como essa. Eu podia ser cuidadosa o bastante com um presente tão grande como aquele.

— Tudo bem. Apenas por uma ou duas noites. Depois devolvo direitinho.
— Esconda bem.

Foi o que fiz. Aquilo era mais que um livro; era a confiança de Joseph. Meti-o dentro da banqueta do piano, debaixo de uma pilha de partituras — era um lugar que as criadas nunca limpavam. As únicas mãos a tocá-lo seriam as minhas.

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